Tradução livre do texto de Mattia Toaldo por Karoline Brasil, link do texto original.
O país vive sua segunda guerra civil desde a queda de Gaddafi, que está sendo travada em torno do controle das receitas do petróleo e suas instituições.
A falta de clareza institucional a respeito de quem está no comando, a queda da produção e dos preços de petróleo agravam a situação.
A Líbia está enfrentando uma grave crise orçamentária que pode desencadear uma crise humanitária com importantes consequências para a Europa.
O país vive sua segunda guerra civil desde a queda de Gaddafi, que está sendo travada em torno do controle das receitas do petróleo e suas instituições.
A falta de clareza institucional a respeito de quem está no comando, a queda da produção e dos preços de petróleo agravam a situação.
A Líbia está enfrentando uma grave crise orçamentária que pode desencadear uma crise humanitária com importantes consequências para a Europa.
Ainda
que em geral não se reconheça fora de suas fronteiras, há uma guerra civil na
Líbia. É o segundo conflito desde os enfrentamentos de 2011 entre o ex-ditador
Muamar Gadafi e o Conselho Nacional de Transição. No momento, os esforços
internacionais para alcançar uma solução negociada têm fracassado, enquanto a
guerra envolve cada vez mais o controle de recursos de petróleo e instituições
financeiras.
Nesta
ocasião, a disputa envolve aqueles que derrotaram o “Coronel” em 2011. Por um
lado, estão os autodenominados “revolucionários”, que controlam a capital, Trípoli.
Sua coalisão, O Amanhecer da Líbia, inclui as milícias de Misrata, das cidades
do oeste do país e da minoria bereber¹, assim como outros grupos de tendência
islâmica. Eles ressuscitaram o Congresso Geral Nacional (CGN) – antigo
parlamento – e elegeram um “governo de salvação nacional”, liderado por Omar al
Hasi, ex-professor de Bengasi. Porém, nenhum outro país fora a Líbia reconhece
seu gabinete, ainda que, segundo se diz, controlem a maioria dos edifícios
governamentais da capital.
Por
outro lado, está o governo reconhecido internacionalmente, com sede nas cidades
de Tobruk e Al Baida, ao leste do país, e presidido por Absulá al Thinni. Ali é
também onde se reúne a Câmara de Representantes, o parlamento eleito em junho de
2014. Recentemente, este grupo se uniu formalmente com o “Operação Dignidade”,
um grupo insurgente formado pelos remanescentes do antigo exército que desertou
das linhas de Gaddafi em 2011, liderado pelo general Jalifa Haftar. Também
fazem parte desta coalisão “anti-islâmica” as milícias da cidade de Zintán,
situada a oeste, as quais, antes do verão, controlavam Trípoli e seu aeroporto
internacional junto dos guardas federalistas das instalações petrolíferas com
Ibrazhim Jadran na liderança.
As
duas coalisões têm histórias opostas. Os que têm sua sede em Tobruk proclamam
que estão lutando contra os terroristas islâmicos, enquanto os situados em
Trípoli proclamam que lutam contra os resíduos do antigo regime. Este choque de
argumentos e interesses contrários provocou a morte de quase três mil pessoas
em 2014, somados aos 400 mil líbios deslocados (em uma população de seis
milhões) e a um número inexplicável de desaparecidos, frequentemente vítimas de
sequestros ou assassinatos políticos.
De
fato, desde a queda de Gaddafi em 2011, a Líbia não entrou em paz realmente. Os
que haviam lutado contra o regime não entregaram suas armas; o governo
provisório os “integrou” nos ministérios da Defesa e Interior. Suas linhas
cresceram quando os jovens do país se sentiram “atraídos” pelo salário de dois
mil dinares líbios mensais (cerca de mil e trezentos euros no câmbio atual) que
o governo pagava aos membros dos grupos armados que lhe pertenciam
nominalmente. Na realidade, foi exatamente o contrário: os grupos armados
haviam se apoderado do governo assaltando o parlamento, sequestrado o primeiro
ministro e distribuindo entre si os cargos públicos, o dinheiro e até as
compras de armas.
Os
recursos naturais da Líbia se tornaram parte da batalha. No verão de 2013, o
que começou como uma greve de trabalhadores das instalações petrolíferas se
converteu em um bloqueio generalizado da produção de petróleo em todo o país
quando diversos grupos começaram a utilizar o controle dos portos e campos
petrolíferos como meio de chantagear o débil governo de Trípoli. A produção de
petróleo, que havia se recuperado da guerra civil de 2011, descendeu
gradualmente a 300 mil barris diários (b/d) nos primeiros meses de 2014, uma
queda significativa em relação aos 1,5 milhões de barris diários de capacidade
da Líbia antes da guerra.
Na
primavera de 2014, o governo de AL Thinni acabou rendendo-se aos líderes do
bloqueio no país. Com a mediação de alguns chefes de tribos, o governo (aquele
ainda com sede em Trípoli) firmou um acordo com os “guardas das instalações
petrolíferas”, liderados por Ibrahim Jadran, o qual havia criado anteriormente
um governo autônomo em Cirenaica. Para os islâmicos e os revolucionários de
Misrata, que neste momento controlavam o CGN, o pacto significava o reconhecimento
político da causa “federalista” enraizado na Cirenaica após meses de sabotagem
à economia.
O
acordo foi firmado em 6 de abril e foi imediatamente negado pelo governo de Al
Thinni, mas ainda assim teve como efeito o reinício da produção de petróleo em
Cirenaica no verão de 2014, apesar de uma ofensiva contra as forças de Jadran
dirigidas pela milícia de Misrata. As alianças militares que se formaram em
torno do acordo para pôr fim ao bloqueio do petróleo se mantiveram nos
acontecimentos posteriores, isto é, no começo dos conflitos em Bengasi em
meados de maio e na batalha por Trípoli em julho e agosto.
Enquanto
o acordo com os autores do bloqueio do petróleo pode ser considerado o estopim
da segunda guerra civil da Líbia, o momento crucial foi o início dos
enfrentamentos em Bengasi em meados de maio. Depois de uma primeira tentativa
fracassada de golpe em 14 de fevereiro em Trípoli, o general aposentado Jalifa
Haftar conseguiu mobilizar parte do antigo exército que havia desertado as
linhas de Gaddafi em 2011 e que mais tarde havia se sentido marginalizado e
ameaçado fisicamente pelos “revolucionários”.
Haftar
se declarou em rebelião contra os islamistas, fato que envolve tanto os que
combateram na revolução quanto o grupo armado mais extremista do momento: Ansar
al Sharia, atualmente na lista negra das Nações Unidas pelo assassinato do
embaixador estadunidense em 2012. Desde Bengasi, os combates se propagaram
rapidamente a Trípoli, onde as milícias de Misrata começaram a destruir o
aeroporto internacional para logo entrarem na capital, substituindo os grupos
armados de Zintan que se deslocaram para sua cidade nas terras altas em torno
de Trípoli.
Atualmente,
os combates na Líbia estão espalhados por pelo menos cinco grandes linhas de
frente principais. Bengasi é onde a batalha têm sido mais feroz: Ansar al
Sharia e seus aliados do Conselho da Shura têm lutado contra o exército
nacional líbio de Haftar e os sahawat,
grupos armados pelo general para lutar contra os islâmicos. No leste, Derna é o
epicentro do grupo Estado Islâmico (EI). Grupos locais têm combatido com outras
milícias islamistas, como os Mártires de Abu Salim e a seção local de Ansar al
Sharia, que não juraram lealdade ao comando central do EI. A terceira frente se
encontra em torno da “meia lua petroleira”, na costa central próximo a Es
Sider, que foi atacada por forças do Amanhecer da Líbia no fim de dezembro. Na
zona ocidental do país, a quarta frente se situa em torno de Trípoli, aonde as
forças do Amanhecer lutam contra os zintanis, a tribo Warshefana e outros
grupos anti-islâmicos. Por último, no sul da Líbia que, desde 2011 têm sido
invariavelmente a zona mais instável do páis, com conflitos locais e de maior
alcance entre as tribos árabes e as três minorias bereber, tubu e tuareg. Mais
recentemente estes conflitos têm se sobreposto ao enfretamento em escala
nacional entre o Amanhecer da Líbia e as forças anti-islâmicas.
A
segunda guerra civil da Líbia começou em torno do petróleo e atualmente se dá
em grande parte próxima aos portos petroleiros. Em 25 de dezembro, forças do
Amanhecer da Líbia (com a notável exceção de algumas das mais destacadas
milícias de Misrata) lançaram a Operação Amanhecer para exercer controle sobre
a “meia lua petrolífera” ao redor de El Sider e Ras Lanuf, onde se encontram
alguns dos maiores portos petroleiros. Sua tentativa fracassou graças ao
contra-ataque dos “federalistas” de Jadran e da potência aérea de Haftar. Apesar
de seu aparente fracasso, a operação marcou uma escalada a mais no conflito,
mas também mostrou as primeiras rupturas significativas entre Misrata, onde
predominava a oposição à operação, e o CGN de Trípoli, que a promoveu. As
mesmas rupturas têm demonstrado interesse em participar nas negociações
realizadas em Genebra, sob os auspícios da ONU. Segundo Claudia Gazzini,
especialista do International Crisis Group (Grupo de Crise Internaciocal) em
Trípoli, por trás da Operação Amanhecer haviam três motivações: a necessidade
de debilitar a cidade de Ras Lanuf antes que se convertesse em uma base para
atacar Trípoli; a ideia de que controlar os campos petrolíferos conduziria ao
reconhecimento internacional do governo de Trípolo; e enviar ao governo Tobruk
um sinal de que nunca ficaria com toda a receita do petróleo.
A Guerra Institucional
A
Operação Amanhecer veio a se juntar às tentativas de controlas algumas
instituições chave relacionadas ao petróleo e os fundos públicos, que na Líbia
estão diretamente conectados, já que quase toda a receita do governo provém do
setor de energia.
O primeiro campo de batalha da
‘guerra institucional” são as instituições políticas. A coalisão Amanhecer
criou seus próprios parlamento e governo alternativos com a esperança de
deslegitimar seus equivalentes em Tobruk. A tentativa foi um fracasso, já que
nem um país reconheceu as instituições de Trípoli. Não obstante, um veredito do
Tribunal Supremo com sede em Trípoli, emitido em 6 de novembro, ditava que o
mapa constitucional que conduzia à eleições da Câmara de Representantes (o
parlamento de Tobruk) era ilegítimo. O veredito se converteu em parte da
batalha institucional entre os grupos, mas mudou pouco do que diz respeito ao
reconhecimento internacional do governo de Trobuk.
A segunda frente institucional é a
Companhia Nacional de Petróleo, que gere a produção e comercialização do
produto. Tem sua sede em Trípoli e luta or manter sua independência das forças
que controlam a cidade. O governo de Tobruk nomeou uma direção rival que nunca
controlou realmente a organização. As receitas de petróleo beneficiam uma
terceira instituição que tem sido alvo de confrontos entre os dois lados na
Líbia, o Banco Central está funcionando como Tesouro Público, recebendo a renda
e pagando os gastos do governo. Também neste caso, o parlamento de Tobruk
nomeou um governador rival que, porém, nunca tomou o controle da instituição
que segue sendo dirigida de Trípoli pelo antigo governador.
Esta batalha institucional
contribuiu para aprofundar a crise, coma economia líbia e os rendimentos
governamentais imersos em uma espiral descendente devido a combinação de
diferentes fatores: a falta de clareza institucional a respeito de quem está
comando e a queda da produção e dos preços do petróleo. Segundo John Hamilton,
diretor da Cross Border Information, parece que entre o bloqueio do petróleo de
2013 e a guerra civil de 2014 foram consumidos aproximadamente dois terços das
reservas líquidas do país (cerca de 40 bilhões de dólares), já que o Banco
Central as utilizou para pagar salários e subsídios à falta da receita prevista
do petróleo.
Os serviços públicos da Líbia já
estão sofrendo as consequências desta crise financeira, com hospitais que carecem
de medicamentos básicos, cortes de consumo elétrico e uma crise humanitária em
potencial se o Gran Río Aritificial, que abastece de água corrente a maior
parte do país, for interrompido, uma eventualidade que não se deve descartar
dado que, por consequência da guerra institucional, não foram realizadas as
tarefas de manutenção na maioria das infraestruturas do país.
Com o nível atual de gastos do
governo e se a crise não for resolvida, é provável que a Líbia enfrente uma
grave crise orçamentária que desencadearia rapidamente uma crise humanitária
resultante do aumento do alcance do colapso dos serviços públicos e de que o governo
deixasse de pagar os salários, o que afetaria mais de 80% da população que os
recebe.
A iminente crise orçamentária poderia
contribuir ainda mais à escalada bélica por diversas razões. A primeira, porque
o colapso dos serviços públicos e a falta de pagamento dos salários pode forçar
os governos rivais a se enfrentarem pelo controle do Banco Central, bem como
pedir um grande empréstimo internacional. Dito isso, a sede do Banco Central em
Bengasi foi atacada em meados de janeiro por forças próximas ao general Haftar.
Ao mesmo tempo, o Banco Central em Trípoli poderia se ver forçado a uma
politização ainda maior, com mais pressão por parte do governo da cidade para
que desembolsasse mais dinheiro público.
A segunda razão é que a batalha
pelos campos e portos de petróleo poderia continuar ou mesmo aumentar de
intensidade se os lados opostos decidirem se aproveitar do controle direto de
instituições independentes já existentes, como a Companhia Nacional do
Petróleo. Isso faria com que a produção e petróleo do país decaísse ainda mais
e, em última instância, desanimaria também os exportadores de produtos
refinados de realizar entregas em portos líbios, a maioria dos quais tem sido
alvo de duros combates ou bloqueios aéreos, como é o caso de Misrata.
Paradoxalmente, isto poderia fazer com que a guerra perdesse forças por falta
de combustível, ainda que até o momento os dois lados tenham sido muito
eficazes em comprar armas do estrangeiro apesar do embargo e, em consequência,
encontrariam algum modo de fazer chegar combustível aos seus tanques e aviões
de combate.
Enquanto isso, os avanços das
conversas supervisionadas pela ONU e lideradas pelo diplomata espanhol,
Bernardino León, serão lentos no melhor dos casos. Finalmente, Estados Unidos e
Reino Unido tem concentrado seus esforços nos aspectos econômicos do atual
conflito, tentando garantir a independência do Banco Central e das instituições
relacionadas com o petróleo. É uma batalha árdua, porém com grandes
possibilidades de evitar uma crise humanitária na Líbia que afetaria
severamente toda a Europa.
TOALDO, M. Petróleo y política en la segunda guerra civil libia. AFKAR/IDEAS. Barecelona, n. 45, p. 50-52, primavera 2015.
TOALDO, M. Petróleo y política en la segunda guerra civil libia. AFKAR/IDEAS. Barecelona, n. 45, p. 50-52, primavera 2015.
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